segunda-feira, 2 de março de 2015

Clarice Lispector (Mulher na Literatura)




















Louca, hermética, mística, genial, inovadora: adjetivos que perpassaram toda obra escrita de Clarice Lispector. De origem pobre, a jovem escritora judia de sotaque engraçado, causa espanto e admiração no cenário da literatura nacional com o lançamento do seu primeiro livro: Perto do coração selvagem. O romance antecederia as principais características das obras subsequentes, a principal delas, o rompimento da lógica cartesiana no romance. Introspectiva para aqueles que não a entenderam, a escritora dá lugar ao pensamento, ao fluxo, escrevendo apenas, como que para salvar a vida de alguém (sem compromissos com o cânone), talvez a dela, como viria a dizer.  Sua escrita é selvagem e convence apenas por ser; suas personagens, assim como sua criadora estão no limiar da descoberta, dos pequenos delitos, das fugas morais, na recriação do mundo e do próprio fazer literário. Em Clarice, biografia e obra se confundem, se misturam, a confissão impregnada nas personagens em terceira pessoa traz em seu cerne um naco grande de carne e essência da escritora, talvez, por isso, ela ficava oca quando terminava de escrever. A palavra para ela é além, é corpórea, matéria vertente, água em fluxo corrente. 

sim, quero a palavra última que também é tão primeira que já se confunde com a parte intangível do real. Ainda tenho medo de afastar da lógica porque caio no instintivo e no direto (...). Que mal porém tem eu me afastar da lógica? Estou lidando com matéria- prima.

Em entrevista ela confirmou minha expectativa ao dizer que para entendê-la era preciso, antes de tudo, sentir, de nada adiantavam as teorias, ela escapava e escapa a qualquer conceituação de gênero. Eu sinto.

Brenda K. Souza

Arte de Anízia Caldeira



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Clarice não escreveu poemas, mas a sua escrita é tão impregnada de poesia que textos de sua autoria são comumente recitados como se fossem poemas. Assim o fez, por exemplo, o diretor de teatro Fauzi Arap, quando adaptou Perto do Coração Selvagem para o teatro. Assim também o fez Maria Bethânia ao selecionar trechos da obra de Clarice para declamar em seus shows.





Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio
como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços
o meu pecado de pensar.
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Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.
De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.

Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.
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E eis que em breve nos separaremos
E a verdade espantada é que eu sempre estive só de ti e não sabia
Eu agora sei, eu sou só
Eu e minha liberdade que não sei usar
Mas, eu assumo a minha solidão
Sou só, e tenho que viver uma certa glória íntima e silenciosa
Guardo teu nome em segredo
Preciso de segredos para viver
E eis que depois de uma tarde de quem sou eu
E de acordar a uma hora da madrugada em desespero
Eis que as três horas da madrugada, acordei e me encontrei
Fui ao encontro de mim, calma, alegre, plenitude sem fulminação
Simplesmente eu sou eu, e você é você
É lindo, é vasto, vai durar
Eu não sei muito bem o que vou fazer em seguida
Mas, por enquanto, olha pra mim e me ama
Não, tu olhas pra ti e te amas
É o que está certo
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Livros de Clarice Lispector para download 

Quase de verdade (infantil)

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