quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Isabel Cristina (Mulher na Literatura)





























Pedagoga e professora, a contadora de histórias e professora piraporense é autora de uma coletânea de contos e crônicas que retratam situações inusitadas, a nostalgia dos tempos de infância, o cotidiano das pequenas cidades do interior norte-mineiro. 


 AMORES DE INFÂNCIA

Ela amou aos nove, aos doze, aos quinze, aos vinte anos e daí por toda vida...
Como tomou consciência do amor não há como sabê-lo; isso parece nascer dentro da gente como o próprio coração, vai tomando forma, crescendo até que um dia pulsa.
Ela amou o caixeiro viajante, o vizinho, o amigo do vizinho, o colega de escola e saiu pela vida a fora amando. Nenhum amor de infância foi concretizado, nem um beijo, nem um abraço, nem um bilhete. Meninas naquela época se contentavam com a simples presença do amado, com a ideia romântica de serem princesas na vida de alguém. Meu Deus, como era bonito amar naquele tempo.
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AS TENDÊNCIA MUDAM, COMO MUDA O MUNDO

Houve um tempo totalmente manchado pela mácula da ignorância onde cabelos bonitos eram apenas os lisos, ainda por cima tinham que ser naturais; por essa razão quem nascia com cabelos crespos tinha poucas alternativas: cortá-los à moda Joãozinho ou alisá-los e esconder a proeza pelo resto da vida, negando até a morte que o cabelo era espichado ou então... Não existia alternativa. O que deixava as crianças e mocinhas da época extremamente chateadas.
Esse não era o único mal para quem tinha cabelos crespos, o detentor desse suposto defeito tinha que suportar os apelidos maldosos dos colegas, tais como: cabelo de farofa, espanador da lua, cabelo de 'Bombril', vassoura de piaçava.
Por uma infelicidade da genética, ou quem sabe pela força do DNA, alguns de nós nascemos com os cabelos crespos, não eram dos piores; entretanto tudo que fugia do liso recebia um apelido especial. Certa feita um vizinho mais velho virou-se para mim e disse:
___ Cabelo de farofa!
E eu como sempre, com essa língua afiada, de respostas sempre prontas respondi:
___ O meu pode ser de farofa, mas o seu é de Pimenta do Reino pra temperar a farofa. Cabelo de Pimenta do Reino pra quem não sabe é aquele de carapinha, bem enroladinho no creco, daqueles que nem mesmo conseguem ficar assanhados.
Acho que ele não esperava por isso ficou sem graça.
Mas por sorte tínhamos uma amiga de infância de cabelo escorrido, ou liso. Ela sim, usava laço.
Ah devo esclarecer que laços de fita era para ‘cabelos bons’.
___ Mas meu Deus, pensava eu, porque meu cabelo não é bom? Os cabelos crespos naquela época tinham poucos direitos, podiam ser presos, mas somente com elásticos, fortes e resistentes. Nada de tiaras, flores, chapéus, fitas de cetim... Reservado somente para os ‘bons’.
E nessa agrura seguíamos ora com os ‘cabelos de Joãozinho’, ora com os cabelos alisados, ora com eles presos por elásticos. Tudo em nome da estética da época. Nunca me esqueci dos laços de cetim amarelos, azuis claros, azuis marinhos, vermelhos, lilases que a nossa coleguinha de cabelo liso usava de fato e de direitos, enquanto as outras meninas sonhavam em ter um cabelo que batesse na bunda, que voasse ao vento e que fosse autorizado a usar fitas coloridas de cetim.
Meu Deus, obrigada o mundo mudou e nem tudo para pior. Outro dia eu vinha pela rua e vi uma linda jovem com seu cabelo “afro”, armado, bonito enfeitado com uma linda flor. Fiquei feliz, porque a diversidade está sendo reconhecida e os modelos de belo estão sendo refeitos.
Graças a Deus. Viva os lenços, as bandanas, as flores, as perucas, os alisantes, as escovas progressivas, as tiaras e tudo que liberte os cabelos da escravidão e os deixe ser o que seus donos desejem que sejam. Enfeite do rosto e cada um com o seu: moicano, afro, punk, com aplique, mega hair, a la Neymar, raspado dos lados, enrolados em panos. Do jeito que for o importante é sentir-se bonito e cabeludo a todo tempo!
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O CARTEIRO, A FLOR E A MENINA

Tita era muito jovem ainda para entender muitas coisas da vida. Entretanto sua inocência era maior do que lhe permitia a idade. Isso se dava em razão de uma criação um tanto reclusa, com pouco acesso ao mundo adulto, e à época em que Tita vivia - lá pelos meados de 1976. 

Nessa época a pequena tinha 6 ou 7 anos, e já demonstrava medo de contrariar as regras sociais impostas. Já era perceptível a personalidade obediente que viria a se instalar naquela menina magrinha, de pele morena. 
Fato é que estando Tita um dia a vaguear pela rua - nesse tempo a grande maioria das ruas dos bairros eram de terra e as casas tinham cercas - a menina viu um raminho de flores que tremulava ao vento. O colorido da flor lhe despertou o desejo de possuí-la. Tita não via mal algum em pegar as flores, todavia elas se encontravam do lado de dentro da cerca, e lá bem no fundinho da consciência inconsciente sabia que elas pertenciam a alguém e para tê-las era necessário pedi-las. 
Num ímpeto de vontade, encorajada pela incerteza de estar ou não cometendo uma infração, a nossa pequena esticou as perninhas, espichou as mãozinhas e alcançou as flores. Talvez fossem até Marias-sem-vergonha, daquelas que nascem sem ninguém plantar no canto das cercas.
Pegou a flor, sentiu toda a maciez na palma da sua mãozinha, foi invadida pela alegria que as coisas belas e simples trazem às pessoas, em especial às crianças. Só então percebeu a vinda de um homem, vestido no traje cáqui, montado em uma bicicleta, daquelas calangas antigas. É preciso explicar ao leitor que Tita vivia em uma época que polícia não tinha tanto trabalho como hoje; que viatura, se é que existia, era na cidade grande; e que carteiro não vestia amarelo e sim cáqui, quase do tom dos soldados.
Bastou ver o homem, que as perninhas da Tita tremeram: pronto pegaram-lhe em pleno delito! para ser mais preciso: roubo. Isso correspondia a no mínimo cem anos de cadeia - coisas da cabeça de Tita.
É preciso dizer que nessa época crianças não sabiam de direitos, nem de órgãos protetores de menores, nem sabiam que no Brasil quanto menor for o valor do objeto roubado, mais propenso à prisão ficará o bandido. Sendo assim a nossa menina inocente pôs-se a correr, corria e olhava pra trás, só para certificar-se da perseguição implacável da suposta “polícia”. Qual não teria sido a visão do carteiro que desconhecia a agonia da Tita. Ele viu apenas uma criança correndo a balançar sua sainha de crochê ao vento. Estaria feliz, afinal criança vive em estado de felicidade, ao menos era o que presumia o carteiro.
Ela correu até que saiu da visão do carteiro, ele a viu dobrar a esquina. Entretanto na cabeça dela a cena foi outra, antes de dobrar a esquina passara por um longo período de perseguição policial. Ah, aquela bicicleta voadora vindo em sua direção... como as bicicletas podiam ser tão rápidas? Mas assim que virou a esquina e cruzou o portão de casa a menina suspirou aliviada, tudo ficara para trás. Suas ofensas à lei teriam sido perdoadas? Quem sabe ela tivesse burlado a lei e conseguido escapar impune? E se o suposto perseguidor viesse reclamar mais tarde?
Indagações a parte, a realidade é que Tita sentiu pela primeira vez duas grandes sensações em fração de segundos: medo da condenação e alívio pela fuga.
Tita cresceu, o carteiro morreu, a polícia mudou, os crimes mudaram, as crianças mudaram, a lei mudou, a cerca deu lugar ao muro, as flores ao concreto, a terra da rua ao asfalto; tudo é diferente, mas parece que lá bem no fundo Tita ainda carrega a alma amedrontada por ameaças que as vezes nem ela mesmo sabe se são reais ou não. Quem sabe não seja mais um carteiro confundido com policia e o empréstimo de uma flor confundido com um roubo?

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Carolina Maria de Jesus (Mulher na Literatura)


























Em 2014 comemorou-se o centenário de nascimento de Carolina Maria de Jesus. Autora de Quarto de Despejo: diário de uma favelada (1960), do livro de memórias Diário de Bitita e do romance Pedaços da Fome (1963). Em sua obra literária Carolina Maria de Jesus relata o seu cotidiano. Suas memórias, registros, diários, são desabafos anotados em cadernos simples, denunciam o preconceito e as mazelas da vida na favela. 
Carolina estudou até o segundo ano. Semi-analfabeta, mãe solteira, negra, catadora de papelão, morando em um barraco de madeira-lata-papelão construído por ela mesma, Carolina Maria de Jesus é mais uma voz feminina que praticamente não ouvimos. Sua obra é pouco conhecida, embora na ocasião da descoberta dos seus cadernos, que deram origem ao livro Quarto de Despejo, fora publicada no Brasil e traduzida em diversos idiomas, tornando-se Best Seller na América do Norte e na Europa. Numa linguagem direta e simples Carolina Maria de Jesus descreve sem rodeios a fome, as várias formas de violências e crua realidade dela e de outras Marias, Carolinas, Bititas. 


Minha Vida
(...)
Eu estava com sete anos e acompanhava a minha mãe por todos os lados. Eu tinha um medo de ficar sozinha. Como se estivesse alguma coisa escondida neste mundo para assustar-me. Eu ainda mamava. Quando senti vontade de mamar comecei a chorar.
“Eu quero irme embora!
Eu quero mamar!
Eu quero irme embora!”
A minha saudosa professora D. Lanita Salvina perguntou-me: “Então a senhora ainda mama?”
“Eu gosto de mamar!”
As alunas sorriram.
“Então a senhora não tem vergonha de mamar?“
“Não tenho!”
A senhorita está ficando mocinha e tem que aprender a ler e escrever, e não vai ter tempo disponível para mamar, porque necessita preparar as lições. Eu gosto de ser obedecida! Estais ouvindo-me D. Carolina Maria de Jesus?”
Fiquei furiosa, e respondi com insolência.
“O meu nome é Bitita. Não quero que troque o meu nome.”
“O teu nome é Carolina Maria de Jesus.”
Era a primeira vez que eu ouvia pronunciar o meu nome.
Que tristeza que senti. Eu não quero este nome, vou trocá-lo por outro.
A professora deu-me umas reguadas nas pernas, parei de chorar. Quando cheguei na minha casa tive nojo de mamar na minha mãe. Compreendi que eu ainda mamava porque era ignorante, ingênua. E a escola
esclareceu-me um pouco.
Minha mãe sorria dizendo:
“Graças a Deus! Eu lutei para desmamar esta cadela e não consegui.” Minha mãe foi beneficiada no meu primeiro dia de aula. Minha tia Oluandimira dizia:
“É porque você é boba e deixa esta negrinha te dominar.”
(...)
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A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.
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"O livro... me fascina. Eu fui criada no mundo. Sem orientação materna. Mas os livros guiou os meus pensamentos. Evitando os abismos que encontramos na vida. Bendita as horas que passei lendo. Cheguei a conclusão que é o pobre quem deve ler. 
Porque o livro, é a bussola que ha de orientar o homem no porvir (...)"
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Não digam que fui rebotalho,
que vivi à margem da vida.
Digam que eu procurava trabalho,
mas fui sempre preterida.
Digam ao povo brasileiro
que meu sonho era ser escritora,
mas eu não tinha dinheiro
para pagar uma editora.

- Carolina Maria de Jesus, em "Quarto de despejo", 1960
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"[...] Deixei o leito para escrever vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhantes. Que a minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de todas as qualidades. [...] É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela. / Fiz o café e fui carregar água. Olhei o céu, a estrela Dalva já estava no céu. Como é horrível pisar na lama./ As horas que sou feliz é quando estou residindo nos castelos imaginários."
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Poesia

A Rosa
Eu sou a flor mais formosa
Disse a rosa
Vaidosa!
Sou a musa do poeta.

Por todos sou contemplada
E adorada.

A rainha predileta.
Minhas pétalas aveludadas
São perfumadas
E acariciadas.

Que aroma rescendente:
Para que me serve esta essência,
Se a existência
Não me é concernente...

Quando surgem as rajadas
Sou desfolhada
Espalhada
Minha vida é um segundo.
Transitivo é meu viver
De ser...
A flor rainha do mundo.

- Carolina Maria de Jesus, em "Antologia pessoal". 
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Dá-me as rosas 
No campo em que eu repousar
Solitária e tenebrosa
Eu vos peço para adornar
O meu jazigo com as rosas

As flores são formosas
Aos olhos de um poeta
Dentre todas são as rosas
A minha flor predileta

Se a afeiçoares aos versos inocentes
Que deixo escritos aqui
E quiseres ofertar-me um presente
Dá-me as rosas que pedi.

Agradeço-lhe com fervor
Desde já o meu obrigado
Se me levares esta flor
No dia dos finados. 
- Carolina Maria de Jesus, em "Antologia pessoal".
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Humanidade
Depôis de conhecer a humanidade
suas perversidades
suas ambições
Eu fui envelhecendo
E perdendo
as ilusões
o que predomina é a
maldade
porque a bondade:
Ninguem pratica
Humanidade ambiciosa
E gananciosa
Que quer ficar rica!
Quando eu morrer...
Não quero renascer
é horrivel, suportar a humanidade
Que tem aparência nobre
Que encobre
As pesimas qualidades

Notei que o ente humano
É perverso, é tirano
Egoista interesseiros
Mas trata com cortêzia
Mas tudo é ipocresia
São rudes, e trapaçêiros

- Carolina Maria de Jesus,  em "Meu estranho diário". 
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[Muitas fugiam ao me ver]
Muitas fugiam ao me ver
Pensando que eu não percebia
Outras pediam pra ler
Os versos que eu escrevia

Era papel que eu catava
Para custear o meu viver
E no lixo eu encontrava livros para ler
Quantas coisas eu quiz fazer
Fui tolhida pelo preconceito
Se eu extinguir quero renascer
Num país que predomina o preto

Adeus! Adeus, eu vou morrer!
E deixo esses versos ao meu país
Se é que temos o direito de renascer
Quero um lugar, onde o preto é feliz.

- Carolina Maria de Jesus, em "Antologia pessoal". 
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Sonhei 
Sonhei que estava morta
Vi um corpo no caixão
Em vez de flores eram Iivros
Que estavam nas minhas mãos
Sonhei que estava estendida
No cimo de uma mesa
Vi o meu corpo sem vida
Entre quatro velas acesas

Ao lado o padre rezava
Comoveu-me a sua oração
Ao bom Deus ele implorava
Para dar-me a salvação
Suplicava ao Pai Eterno
Para amenizar o meu sofrimento
Não me enviar para o inferno
Que deve ser um tormento

Ele deu-me a extrema-unção
Quanta ternura notei
Quando foi fechar o caixão
Eu sorri... e despertei. 

- Carolina Maria de Jesus, em "Antologia pessoal".
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Quarto de Despejo 

Quando infiltrei na literatura
Sonhava só com a ventura
Minhalma estava chêia de hianto
Eu não previa o pranto. Ao publicar o Quarto de Despejo
Concretisava assim o meu desejo.
Que vida. Que alegria.
E agora... Casa de alvenaria.
Outro livro que vae circular
As tristêsas vão duplicar.
Os que pedem para eu auxiliar
A concretisar os teus desejos
Penso: eu devia publicar...
– o ‘Quarto de Despejo’.

No início vêio adimiração
O meu nome circulou a Nação.
Surgiu uma escritora favelada.
Chama: Carolina Maria de Jesus.
E as obras que ela produz

Deixou a humanidade habismada
No início eu fiquei confusa.
Parece que estava oclusa
Num estôjo de marfim.
Eu era solicitada
Era bajulada.
Como um querubim.

Depôis começaram a me invejar.
Dizia: você deve dar
Os teus bens, para um asilo
Os que assim me falava
Não pensava.
Nos meus filhos.

As damas da alta sociedade.
Dizia: praticae a caridade.
Doando aos pobres agasalhos.
Mas o dinheiro da alta sociedade
Não é destinado a caridade
É para os prados, e os baralhos

E assim, eu fui desiludindo
O meu ideal regridindo
Igual um côrpo envelhecendo.
Fui enrrugando, enrrugando...
Petalas de rosa, murchando, murchando
E... estou morrendo!

Na campa silente e fria
Hei de repousar um dia...
Não levo nenhuma ilusão
Porque a escritora favelada
Foi rosa despetalada.
Quantos espinhos em meu coração.
Dizem que sou ambiciosa
Que não sou caridosa.
Incluiram-me entre os usurários
Porque não critica os industriaes
Que tratam como animaes.
– Os operários... 


- Carolina Maria de Jesus, em "Meu estranho diário".

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Conceição Evaristo (Mulher na Literatura)


Mulher, negra, doutora em Literatura Comparada, a escritora de Belo Horizonte, Conceição Evaristo, tem uma escrita engajada, onde a figura feminina é o referencial, representado por mães, avós, filhas, mulheres comuns, e, sobretudo a mulher negra, pobre e oprimida. Através de sua literatura a escritora faz uma leitura da realidade da mulher negra na sociedade brasileira, analisando as raízes da desigualdade racial e de gênero, buscando situar todas essas questões a partir de suas experiências pessoais e da observação. Assim, o trabalho de Conceição Evaristo, uma mulher, militante e nascida na favela, torna-se importantíssimo por trazer para a pauta do dia as questões mais relevantes para a sociedade miscigenada e desigual em que a autora está inserida.

EU-MULHER

Uma gota de leite
me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas
Meia palavra mordida
me foge da boca.
Vagos desejos insinuam esperanças.
Eu-mulher em rios vermelhos
inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo
Antes - agora - o que há de vir.
Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo.
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Meia lágrima

Não,
a água não me escorre
entre os dedos,
tenho as mãos em concha
e no côncavo de minhas palmas
meia gota me basta.
Das lágrimas em meus olhos secos,
basta o meio tom do soluço
para dizer o pranto inteiro.

Sei ainda ver com um só olho,
enquanto o outro,
o cisco cerceia
e da visão que me resta
vazo o invisível
e vejo as inesquecíveis sombras
dos que já se foram.
Da língua cortada,
digo tudo,
amasso o silencio
e no farfalhar do meio som
solto o grito do grito do grito
e encontro a fala anterior,
aquela que emudecida,
conservou a voz e os sentidos
nos labirintos da lembrança.
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Vozes Mulheres

A voz da minha bisavó
Ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.

A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.

A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue e fome.

A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato
O ontem – o hoje – o agora.

Na voz de minha filha
se fará ouvir
a ressonância
o eco da vida-
liberdade
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A noite não adormece nos olhos das mulheres

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.
A noite não adormece
nos olhos das mulheres,
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças.
A noite não adormece
nos olhos das mulheres
vaginas abertas
retêm e expulsam a vida
donde Ainás, Nzingas, Ngambeles
e outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas.
A noite não adormecerá
jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede
de nossa milenar resistência.
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Todas as manhãs

Todas as manhãs acoito sonhos
e acalento entre a unha e a carne
uma agudíssima dor.
Todas as manhãs tenho os punhos
sangrando e dormentes
tal é a minha lida

cavando, cavando torrões de terra,
até lá, onde os homens enterram
a esperança roubada de outros homens.
Todas as manhãs junto ao nascente dia
ouço a minha voz-banzo,
âncora dos navios de nossa memória.
E acredito, acredito sim
que os nossos sonhos protegidos
pelos lençóis da noite
ao se abrirem um a um
no varal de um novo tempo
escorrem as nossas lágrimas
fertilizando toda a terra
onde negras sementes resistem
reamanhecendo esperanças em nós.
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Para a menina

Desmancho as tranças da menina
e os meus dedos tremem
medos nos caminhos
repartidos de seus cabelos.
Lavo o corpo da menina
e as minhas mãos tropeçam
dores nas marcas-lembranças
de um chicote traiçoeiro.
Visto a menina
e aos meus olhos
a cor de sua veste
insiste e se confunde
com o sangue que escorre
do corpo-solo de um povo.
Sonho os dias da menina
e a vida surge grata

descruzando as tranças
e a veste surge farta
justa e definida
e o sangue se estanca
passeando tranqüilo
na veia de novos caminhos,
esperança.
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Do Velho ao Jovem

Na face do velho
as rugas são letras,
palavras escritas na carne,
abecedário do viver.
Na face do jovem
o frescor da pele
e o brilho dos olhos
são dúvidas.
Nas mãos entrelaçadas
de ambos,
o velho tempo
funde-se ao novo,
e as falas silenciadas
explodem.
O que os livros escondem,
as palavras ditas libertam.
E não há quem ponha
um ponto final na história

Infinitas são as personagens...
Vovó Kalinda, Tia Mambene,
Primo Sendó, Ya Tapuli,
Menina Meká, Menino Kambi,
Neide do Brás, Cíntia da Lapa,
Piter do Estácio, Cris de Acari,
Mabel do Pelô, Sil de Manaíra,
E também de Santana e de Belô
e mais e mais, outras e outros...
Nos olhos do jovem
também o brilho de muitas histórias.
e não há quem ponha
um ponto final no rap
É preciso eternizar as palavras
da liberdade ainda e agora...
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Malungo, brother, irmão

No fundo do calumbé
nossas mãos ainda
espalmam cascalhos
nem ouro nem diamante
espalham enfeites
em nossos seios e dedos.

Tudo se foi
mas a cobra
deixa o seu rastro
nos caminhos aonde passa
e a lesma lenta
em seu passo-arrasto
larga uma gosma dourada
que brilha no sol.
um dia antes
um dia avante
a dívida acumula
e fere o tempo tenso
da paciência gasta
de quem há muito espera.
Os homens constroem
no tempo o lastro,
laços de esperanças
que amarram e sustentam
o mastro que passa
da vida em vida.
no fundo do calumbé
nossas mãos sempre e sempre
espalmam nossas outras mãos
moldando fortalezas e esperanças,
heranças nossas divididas com você:
malungo, brother, irmão.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Lya Luft (Mulher na Literatura)


 
Essa tradutora e escritora gaúcha, de família alemã, desde adolescente se mostrou "desobediente" e contestadora. Sempre foi ávida leitora. Diplomou-se em Pedagogia e Letras. Traduziu diversas obras do Inglês e do Alemão para o Português. Escreve artigos para a revista semanal Veja.
É autora de diversos livros como os romances AS PARCEIRAS (1980), A ASA ESQUERDA DO ANJO (1981), REUNIÃO DE FAMÍLIA (1984), EXÍLIO (1987) e o livro de poemas O LADO FATAL (1989). Em 1996 lançou O RIO DO MEIO (ensaios) que foi considerado a melhor obra de ficção daquele ano. No total, já escreveu e publicou 23 livros, entre romances, coletâneas de poemas, crônicas, ensaios e livros infantis.
Como Lya Luft se define: 

"Sou fascinada pelo lado complicado. Tenho um olho alegre que vive: sou uma pessoa despachada, adoro família, adoro a natureza. Mas eu tenho um outro olho que observa o lado difícil, sombrio. A minha literatura nunca vai ser "aí casaram e foram felizes para sempre". Minha literatura sempre nasceu do conflito, da dificuldade, do isolamento".
—Lya Luft

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CONVITE

Não sou a areia
onde se desenha um par de asas
ou grades diante de uma janela.
Não sou apenas a pedra que rola
nas marés do mundo,
em cada praia renascendo outra.
Sou a orelha encostada na concha
da vida, sou construção e desmoronamento,
servo e senhor, e sou
mistério

A quatro mãos escrevemos este roteiro
para o palco de meu tempo:
o meu destino e eu.
Nem sempre estamos afinados,
nem sempre nos levamos
a sério.
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CANÇÃO EM SEGREDO

Dentro desta mulher
um anjo menino
brinca de ciranda na calçada
e tem fome de futuro.
Dentro desta mulher
uma criança se debruça na janela
vendo chegar o amor
e se julga imortal.

Dentro desta mulher
uma guerreira constrói sua vida
depois de parir filhos para o mundo.
Dentro desta mulher
outra mulher enterra o seu amor perdido
e mesmo assim espera.

Dentro desta mulher
o mistério das coisas
finge dormir.  

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MATURIDADE

Caminho entre as minhas perdas
que são insetos escuros,
e os meus ganhos: douradas borboletas.

A luz de uma paixão, o dedo da morte,
o grave pincel da solidão
desenharam meus contornos, firmaram
meu chão.

Que liberdade, não precisar pensar;
que alívio não ter de administrar
minha vida:
apenas andar, e olhar,
apenas ouvir essas vozes
que vêm de longe, passam por mim
e não me dão importância.

Porque no vasto oceano,
a minha eventual desarmonia
é só uma gota
desafinada.
Mais nada.

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AUTO RETRATO

Alguém diz que sou bondosa:
está tão enganado que dá pena.
Alguém diz que sou severa,
e acho graça.
Não sou áspera nem amena:
estou na vida como o jardineiro
se entrega em cada rosa

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O LADO FATAL XV

Não falem alto comigo:
andem sempre na ponta dos pés.
Principalmente, não me toquem.
Finjam que não vêem se tenho um jeito absorto,
se nem sempre entendo as perguntas
com a rapidez de antigamente,
se pareço fatigada
e sem graça como nunca fui.
Façam silêncio ao meu redor.
Não me interessa nada o cotidiano nem o místico.
Não quero discutir o preço do mercado
nem os grandes mistérios da eternidade.
 

 

Obra poética de Lya Luft aqui 
Baixar o livro O MAR DE DENTRO aqui

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Cecília Meireles (Mulher na Literatura)






















Uma escritora atemporal. Cecília Meireles absorveu as influências do simbolismo, romantismo, parnasianismo, classicismo, realismo e surrealismo. Todas essas influências se amalgamam na vasta obra de Cecília. Espectros foi o seu livro de estreia aos 18 anos de idade. Um livro de sonetos simbolistas. Casou. Teve três filhas. Trabalhou como jornalista escrevendo artigos sobre questões da área da educação. Fundou a primeira biblioteca infantil do Brasil. Aliás, seus poemas infantis permanecem como referência para os que escrevem para o público infantil. Cecília produziu vasta obra poética sobre diversos temas e de forma fascinante. 

Reinvenção
A vida só é possível
reinventada.
Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas…
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo… — mais nada.
Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.
Não te encontro, não te alcanço…
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.
Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
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Herança

Eu vim de infinitos caminhos,
e os meus sonhos choveram lúcido pranto
pelo chão.

Quando é que frutifica, nos caminhos infinitos,
essa vida, que era tão viva, tão fecunda,
porque vinha de um coração?

E os que vierem depois, pelos caminhos infinitos,
do pranto que caiu dos meus olhos passados,
que experiência, ou consolo, ou prêmio alcançarão?
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Motivo
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.
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Desenho do Sonho

Eu, mulher dormente,
na líquida noite
alargo a ramagem de meus cabelos verdes.
Sigo dentro desse cristal ondulante,
contida como o som dos sinos imóveis.
Surda é a transparência do mundo que ocupo,
onde vago, em vigilância do eterno,
livre do efêmero visível e tranqüila,
e embora incomunicável,
em solidão feliz.
Eu, mulher dormente, de olhos fechados
estou vendo essas paredes fluidas que caminham comigo mesma,
na cristalina arquitetura:
muralha de sucessivos patamares à luz de nenhum sol.
Espelhos de quartzo verde
em que me reconheço admirada, de olhos abertos desde sempre,
para sempre,
desenhando-me involuntária,
buscando-me exata,
fugindo-me nesta caligrafia que não alcanço.
Ah! dos meus verdes cabelos
sobem agora ramos de rosas,
alta coroa de retrato submerso,
frágil e melancólica,
e já me esqueço do que vou sonhando.
E nem suspiro
se as flores se desfolharem nesse planeta de silêncio.


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