quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Isabel Cristina (Mulher na Literatura)





























Pedagoga e professora, a contadora de histórias e professora piraporense é autora de uma coletânea de contos e crônicas que retratam situações inusitadas, a nostalgia dos tempos de infância, o cotidiano das pequenas cidades do interior norte-mineiro. 


 AMORES DE INFÂNCIA

Ela amou aos nove, aos doze, aos quinze, aos vinte anos e daí por toda vida...
Como tomou consciência do amor não há como sabê-lo; isso parece nascer dentro da gente como o próprio coração, vai tomando forma, crescendo até que um dia pulsa.
Ela amou o caixeiro viajante, o vizinho, o amigo do vizinho, o colega de escola e saiu pela vida a fora amando. Nenhum amor de infância foi concretizado, nem um beijo, nem um abraço, nem um bilhete. Meninas naquela época se contentavam com a simples presença do amado, com a ideia romântica de serem princesas na vida de alguém. Meu Deus, como era bonito amar naquele tempo.
_____________________________________________

AS TENDÊNCIA MUDAM, COMO MUDA O MUNDO

Houve um tempo totalmente manchado pela mácula da ignorância onde cabelos bonitos eram apenas os lisos, ainda por cima tinham que ser naturais; por essa razão quem nascia com cabelos crespos tinha poucas alternativas: cortá-los à moda Joãozinho ou alisá-los e esconder a proeza pelo resto da vida, negando até a morte que o cabelo era espichado ou então... Não existia alternativa. O que deixava as crianças e mocinhas da época extremamente chateadas.
Esse não era o único mal para quem tinha cabelos crespos, o detentor desse suposto defeito tinha que suportar os apelidos maldosos dos colegas, tais como: cabelo de farofa, espanador da lua, cabelo de 'Bombril', vassoura de piaçava.
Por uma infelicidade da genética, ou quem sabe pela força do DNA, alguns de nós nascemos com os cabelos crespos, não eram dos piores; entretanto tudo que fugia do liso recebia um apelido especial. Certa feita um vizinho mais velho virou-se para mim e disse:
___ Cabelo de farofa!
E eu como sempre, com essa língua afiada, de respostas sempre prontas respondi:
___ O meu pode ser de farofa, mas o seu é de Pimenta do Reino pra temperar a farofa. Cabelo de Pimenta do Reino pra quem não sabe é aquele de carapinha, bem enroladinho no creco, daqueles que nem mesmo conseguem ficar assanhados.
Acho que ele não esperava por isso ficou sem graça.
Mas por sorte tínhamos uma amiga de infância de cabelo escorrido, ou liso. Ela sim, usava laço.
Ah devo esclarecer que laços de fita era para ‘cabelos bons’.
___ Mas meu Deus, pensava eu, porque meu cabelo não é bom? Os cabelos crespos naquela época tinham poucos direitos, podiam ser presos, mas somente com elásticos, fortes e resistentes. Nada de tiaras, flores, chapéus, fitas de cetim... Reservado somente para os ‘bons’.
E nessa agrura seguíamos ora com os ‘cabelos de Joãozinho’, ora com os cabelos alisados, ora com eles presos por elásticos. Tudo em nome da estética da época. Nunca me esqueci dos laços de cetim amarelos, azuis claros, azuis marinhos, vermelhos, lilases que a nossa coleguinha de cabelo liso usava de fato e de direitos, enquanto as outras meninas sonhavam em ter um cabelo que batesse na bunda, que voasse ao vento e que fosse autorizado a usar fitas coloridas de cetim.
Meu Deus, obrigada o mundo mudou e nem tudo para pior. Outro dia eu vinha pela rua e vi uma linda jovem com seu cabelo “afro”, armado, bonito enfeitado com uma linda flor. Fiquei feliz, porque a diversidade está sendo reconhecida e os modelos de belo estão sendo refeitos.
Graças a Deus. Viva os lenços, as bandanas, as flores, as perucas, os alisantes, as escovas progressivas, as tiaras e tudo que liberte os cabelos da escravidão e os deixe ser o que seus donos desejem que sejam. Enfeite do rosto e cada um com o seu: moicano, afro, punk, com aplique, mega hair, a la Neymar, raspado dos lados, enrolados em panos. Do jeito que for o importante é sentir-se bonito e cabeludo a todo tempo!
_____________________________________________

O CARTEIRO, A FLOR E A MENINA

Tita era muito jovem ainda para entender muitas coisas da vida. Entretanto sua inocência era maior do que lhe permitia a idade. Isso se dava em razão de uma criação um tanto reclusa, com pouco acesso ao mundo adulto, e à época em que Tita vivia - lá pelos meados de 1976. 

Nessa época a pequena tinha 6 ou 7 anos, e já demonstrava medo de contrariar as regras sociais impostas. Já era perceptível a personalidade obediente que viria a se instalar naquela menina magrinha, de pele morena. 
Fato é que estando Tita um dia a vaguear pela rua - nesse tempo a grande maioria das ruas dos bairros eram de terra e as casas tinham cercas - a menina viu um raminho de flores que tremulava ao vento. O colorido da flor lhe despertou o desejo de possuí-la. Tita não via mal algum em pegar as flores, todavia elas se encontravam do lado de dentro da cerca, e lá bem no fundinho da consciência inconsciente sabia que elas pertenciam a alguém e para tê-las era necessário pedi-las. 
Num ímpeto de vontade, encorajada pela incerteza de estar ou não cometendo uma infração, a nossa pequena esticou as perninhas, espichou as mãozinhas e alcançou as flores. Talvez fossem até Marias-sem-vergonha, daquelas que nascem sem ninguém plantar no canto das cercas.
Pegou a flor, sentiu toda a maciez na palma da sua mãozinha, foi invadida pela alegria que as coisas belas e simples trazem às pessoas, em especial às crianças. Só então percebeu a vinda de um homem, vestido no traje cáqui, montado em uma bicicleta, daquelas calangas antigas. É preciso explicar ao leitor que Tita vivia em uma época que polícia não tinha tanto trabalho como hoje; que viatura, se é que existia, era na cidade grande; e que carteiro não vestia amarelo e sim cáqui, quase do tom dos soldados.
Bastou ver o homem, que as perninhas da Tita tremeram: pronto pegaram-lhe em pleno delito! para ser mais preciso: roubo. Isso correspondia a no mínimo cem anos de cadeia - coisas da cabeça de Tita.
É preciso dizer que nessa época crianças não sabiam de direitos, nem de órgãos protetores de menores, nem sabiam que no Brasil quanto menor for o valor do objeto roubado, mais propenso à prisão ficará o bandido. Sendo assim a nossa menina inocente pôs-se a correr, corria e olhava pra trás, só para certificar-se da perseguição implacável da suposta “polícia”. Qual não teria sido a visão do carteiro que desconhecia a agonia da Tita. Ele viu apenas uma criança correndo a balançar sua sainha de crochê ao vento. Estaria feliz, afinal criança vive em estado de felicidade, ao menos era o que presumia o carteiro.
Ela correu até que saiu da visão do carteiro, ele a viu dobrar a esquina. Entretanto na cabeça dela a cena foi outra, antes de dobrar a esquina passara por um longo período de perseguição policial. Ah, aquela bicicleta voadora vindo em sua direção... como as bicicletas podiam ser tão rápidas? Mas assim que virou a esquina e cruzou o portão de casa a menina suspirou aliviada, tudo ficara para trás. Suas ofensas à lei teriam sido perdoadas? Quem sabe ela tivesse burlado a lei e conseguido escapar impune? E se o suposto perseguidor viesse reclamar mais tarde?
Indagações a parte, a realidade é que Tita sentiu pela primeira vez duas grandes sensações em fração de segundos: medo da condenação e alívio pela fuga.
Tita cresceu, o carteiro morreu, a polícia mudou, os crimes mudaram, as crianças mudaram, a lei mudou, a cerca deu lugar ao muro, as flores ao concreto, a terra da rua ao asfalto; tudo é diferente, mas parece que lá bem no fundo Tita ainda carrega a alma amedrontada por ameaças que as vezes nem ela mesmo sabe se são reais ou não. Quem sabe não seja mais um carteiro confundido com policia e o empréstimo de uma flor confundido com um roubo?

Nenhum comentário:

Postar um comentário