Pedagoga e professora, a contadora de histórias e professora piraporense é autora de uma coletânea de contos e crônicas que retratam situações inusitadas, a nostalgia dos tempos de infância, o cotidiano das pequenas cidades do interior norte-mineiro.
AMORES DE INFÂNCIA
Ela amou aos nove, aos
doze, aos quinze, aos vinte anos e daí por toda vida...
Como tomou consciência do
amor não há como sabê-lo; isso parece nascer dentro da gente como
o próprio coração, vai tomando forma, crescendo até que um dia
pulsa.
Ela amou o caixeiro
viajante, o vizinho, o amigo do vizinho, o colega de escola e saiu
pela vida a fora amando. Nenhum amor de infância foi concretizado,
nem um beijo, nem um abraço, nem um bilhete. Meninas naquela época
se contentavam com a simples presença do amado, com a ideia
romântica de serem princesas na vida de alguém. Meu Deus, como era
bonito amar naquele tempo.
_____________________________________________
AS
TENDÊNCIA MUDAM, COMO MUDA O MUNDO
Houve um
tempo totalmente manchado pela mácula da ignorância onde cabelos
bonitos eram apenas os lisos, ainda por cima tinham que ser naturais;
por essa razão quem nascia com cabelos crespos tinha poucas
alternativas: cortá-los à moda Joãozinho ou alisá-los e esconder
a proeza pelo resto da vida, negando até a morte que o cabelo era
espichado ou então... Não existia alternativa. O que deixava as
crianças e mocinhas da época extremamente chateadas.
Esse não
era o único mal para quem tinha cabelos crespos, o detentor desse
suposto defeito tinha que suportar os apelidos maldosos dos colegas,
tais como: cabelo de farofa, espanador da lua, cabelo de 'Bombril',
vassoura de piaçava.
Por
uma infelicidade da genética, ou quem sabe pela força do DNA,
alguns de nós nascemos com os cabelos crespos, não eram dos piores;
entretanto tudo que fugia do liso recebia um apelido especial. Certa
feita um vizinho mais velho virou-se para mim e disse:
___ Cabelo de farofa!
E eu como
sempre, com essa língua afiada, de respostas sempre prontas
respondi:
___ O meu pode ser de
farofa, mas o seu é de Pimenta do Reino pra temperar a farofa.
Cabelo de Pimenta do Reino pra quem não sabe é aquele de carapinha,
bem enroladinho no creco, daqueles que nem mesmo conseguem ficar
assanhados.
Acho que ele não esperava
por isso ficou sem graça.
Mas por sorte tínhamos uma
amiga de infância de cabelo escorrido, ou liso. Ela sim, usava laço.
Ah devo esclarecer que
laços de fita era para ‘cabelos bons’.
___ Mas meu Deus, pensava
eu, porque meu cabelo não é bom? Os cabelos crespos naquela época
tinham poucos direitos, podiam ser presos, mas somente com elásticos,
fortes e resistentes. Nada de tiaras, flores, chapéus, fitas de
cetim... Reservado somente para os ‘bons’.
E nessa agrura seguíamos
ora com os ‘cabelos de Joãozinho’, ora com os cabelos alisados,
ora com eles presos por elásticos. Tudo em nome da estética da
época. Nunca me esqueci dos laços de cetim amarelos, azuis claros,
azuis marinhos, vermelhos, lilases que a nossa coleguinha de cabelo
liso usava de fato e de direitos, enquanto as outras meninas sonhavam
em ter um cabelo que batesse na bunda, que voasse ao vento e que
fosse autorizado a usar fitas coloridas de cetim.
Meu Deus, obrigada o mundo
mudou e nem tudo para pior. Outro dia eu vinha pela rua e vi uma
linda jovem com seu cabelo “afro”, armado, bonito enfeitado com
uma linda flor. Fiquei feliz, porque a diversidade está sendo
reconhecida e os modelos de belo estão sendo refeitos.
Graças a Deus. Viva os
lenços, as bandanas, as flores, as perucas, os alisantes, as escovas
progressivas, as tiaras e tudo que liberte os cabelos da escravidão
e os deixe ser o que seus donos desejem que sejam. Enfeite do rosto e
cada um com o seu: moicano, afro, punk, com aplique, mega hair, a la
Neymar, raspado dos lados, enrolados em panos. Do jeito que for o
importante é sentir-se bonito e cabeludo a todo tempo!
_____________________________________________
O
CARTEIRO, A FLOR E A MENINA
Tita era
muito jovem ainda para entender muitas coisas da vida. Entretanto sua
inocência era maior do que lhe permitia a idade. Isso se dava em
razão de uma criação um tanto reclusa, com pouco acesso ao mundo
adulto, e à época em que Tita vivia - lá pelos meados de 1976.
Nessa
época a pequena tinha 6 ou 7 anos, e já demonstrava medo de
contrariar as regras sociais impostas. Já era perceptível a
personalidade obediente que viria a se instalar naquela menina
magrinha, de pele morena.
Fato é que estando Tita
um dia a vaguear pela rua - nesse tempo a grande maioria das ruas
dos bairros eram de terra e as casas tinham cercas - a menina viu um
raminho de flores que tremulava ao vento. O colorido da flor lhe
despertou o desejo de possuí-la. Tita não via mal algum em pegar
as flores, todavia elas se encontravam do lado de dentro da cerca, e
lá bem no fundinho da consciência inconsciente sabia que elas
pertenciam a alguém e para tê-las era necessário pedi-las.
Num ímpeto
de vontade, encorajada pela incerteza de estar ou não cometendo uma
infração, a nossa pequena esticou as perninhas, espichou as
mãozinhas e alcançou as flores. Talvez fossem até
Marias-sem-vergonha, daquelas que nascem sem ninguém plantar no
canto das cercas.
Pegou a
flor, sentiu toda a maciez na palma da sua mãozinha, foi invadida
pela alegria que as coisas belas e simples trazem às pessoas, em
especial às crianças. Só então percebeu a vinda de um homem,
vestido no traje cáqui, montado em uma bicicleta, daquelas calangas
antigas. É preciso explicar ao leitor que Tita vivia em uma época
que polícia não tinha tanto trabalho como hoje; que viatura, se é
que existia, era na cidade grande; e que carteiro não vestia amarelo
e sim cáqui, quase do tom dos soldados.
Bastou ver
o homem, que as perninhas da Tita tremeram: pronto pegaram-lhe em
pleno delito! para ser mais preciso: roubo. Isso correspondia a no
mínimo cem anos de cadeia - coisas da cabeça de Tita.
É preciso
dizer que nessa época crianças não sabiam de direitos, nem de
órgãos protetores de menores, nem sabiam que no Brasil quanto menor
for o valor do objeto roubado, mais propenso à prisão ficará o
bandido. Sendo assim a nossa menina inocente pôs-se a correr, corria
e olhava pra trás, só para certificar-se da perseguição
implacável da suposta “polícia”. Qual não teria sido a visão
do carteiro que desconhecia a agonia da Tita. Ele viu apenas uma
criança correndo a balançar sua sainha de crochê ao vento. Estaria
feliz, afinal criança vive em estado de felicidade, ao menos era o
que presumia o carteiro.
Ela correu
até que saiu da visão do carteiro, ele a viu dobrar a esquina.
Entretanto na cabeça dela a cena foi outra, antes de dobrar a
esquina passara por um longo período de perseguição policial. Ah,
aquela bicicleta voadora vindo em sua direção... como as bicicletas
podiam ser tão rápidas? Mas assim que virou a esquina e cruzou o
portão de casa a menina suspirou aliviada, tudo ficara para trás.
Suas ofensas à lei teriam sido perdoadas? Quem sabe ela tivesse
burlado a lei e conseguido escapar impune? E se o suposto perseguidor
viesse reclamar mais tarde?
Indagações
a parte, a realidade é que Tita sentiu pela primeira vez duas
grandes sensações em fração de segundos: medo da condenação e
alívio pela fuga.
Tita
cresceu, o carteiro morreu, a polícia mudou, os crimes mudaram, as
crianças mudaram, a lei mudou, a cerca deu lugar ao muro, as flores
ao concreto, a terra da rua ao asfalto; tudo é diferente, mas parece
que lá bem no fundo Tita ainda carrega a alma amedrontada por
ameaças que as vezes nem ela mesmo sabe se são reais ou não. Quem
sabe não seja mais um carteiro confundido com policia e o empréstimo
de uma flor confundido com um roubo?
Nenhum comentário:
Postar um comentário