Em 2014 comemorou-se o centenário de nascimento de Carolina Maria de Jesus. Autora de Quarto de Despejo: diário de uma favelada (1960), do livro de memórias Diário de Bitita e do romance Pedaços da Fome (1963). Em sua obra literária Carolina Maria de Jesus relata o seu cotidiano. Suas memórias, registros, diários, são desabafos anotados em cadernos simples, denunciam o preconceito e as mazelas da vida na favela.
Carolina estudou até o segundo ano. Semi-analfabeta, mãe solteira, negra, catadora de papelão, morando em um barraco de madeira-lata-papelão construído por ela mesma, Carolina Maria de Jesus é mais uma voz feminina que praticamente não ouvimos. Sua obra é pouco conhecida, embora na ocasião da descoberta dos seus cadernos, que deram origem ao livro Quarto de Despejo, fora publicada no Brasil e traduzida em diversos idiomas, tornando-se Best Seller na América do Norte e na Europa. Numa linguagem direta e simples Carolina Maria de Jesus descreve sem rodeios a fome, as várias formas de violências e crua realidade dela e de outras Marias, Carolinas, Bititas.
Sonhei
Sonhei que estava morta
Vi um corpo no caixão
Em vez de flores eram Iivros
Que estavam nas minhas mãos
Sonhei que estava estendida
No cimo de uma mesa
Vi o meu corpo sem vida
Entre quatro velas acesas
Ao lado o padre rezava
Comoveu-me a sua oração
Ao bom Deus ele implorava
Para dar-me a salvação
Suplicava ao Pai Eterno
Para amenizar o meu sofrimento
Não me enviar para o inferno
Que deve ser um tormento
Ele deu-me a extrema-unção
Quanta ternura notei
Quando foi fechar o caixão
Eu sorri... e despertei.
- Carolina Maria de Jesus, em "Antologia pessoal".
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Quarto de Despejo
Quando infiltrei na literatura
Sonhava só com a ventura
Minhalma estava chêia de hianto
Eu não previa o pranto. Ao publicar o Quarto de Despejo
Concretisava assim o meu desejo.
Que vida. Que alegria.
E agora... Casa de alvenaria.
Outro livro que vae circular
As tristêsas vão duplicar.
Os que pedem para eu auxiliar
A concretisar os teus desejos
Penso: eu devia publicar...
– o ‘Quarto de Despejo’.
No início vêio adimiração
O meu nome circulou a Nação.
Surgiu uma escritora favelada.
Chama: Carolina Maria de Jesus.
E as obras que ela produz
Deixou a humanidade habismada
No início eu fiquei confusa.
Parece que estava oclusa
Num estôjo de marfim.
Eu era solicitada
Era bajulada.
Como um querubim.
Depôis começaram a me invejar.
Dizia: você deve dar
Os teus bens, para um asilo
Os que assim me falava
Não pensava.
Nos meus filhos.
As damas da alta sociedade.
Dizia: praticae a caridade.
Doando aos pobres agasalhos.
Mas o dinheiro da alta sociedade
Não é destinado a caridade
É para os prados, e os baralhos
E assim, eu fui desiludindo
O meu ideal regridindo
Igual um côrpo envelhecendo.
Fui enrrugando, enrrugando...
Petalas de rosa, murchando, murchando
E... estou morrendo!
Na campa silente e fria
Hei de repousar um dia...
Não levo nenhuma ilusão
Porque a escritora favelada
Foi rosa despetalada.
Quantos espinhos em meu coração.
Dizem que sou ambiciosa
Que não sou caridosa.
Incluiram-me entre os usurários
Porque não critica os industriaes
Que tratam como animaes.
– Os operários...
Carolina estudou até o segundo ano. Semi-analfabeta, mãe solteira, negra, catadora de papelão, morando em um barraco de madeira-lata-papelão construído por ela mesma, Carolina Maria de Jesus é mais uma voz feminina que praticamente não ouvimos. Sua obra é pouco conhecida, embora na ocasião da descoberta dos seus cadernos, que deram origem ao livro Quarto de Despejo, fora publicada no Brasil e traduzida em diversos idiomas, tornando-se Best Seller na América do Norte e na Europa. Numa linguagem direta e simples Carolina Maria de Jesus descreve sem rodeios a fome, as várias formas de violências e crua realidade dela e de outras Marias, Carolinas, Bititas.
Minha
Vida
(...)
(...)
Eu
estava com sete anos e acompanhava a minha mãe por todos os lados. Eu tinha um
medo de ficar sozinha. Como se estivesse alguma coisa escondida neste mundo
para assustar-me. Eu ainda mamava. Quando senti vontade de mamar comecei a
chorar.
“Eu quero irme embora!
Eu quero mamar!
Eu quero irme embora!”
A minha saudosa professora D. Lanita Salvina perguntou-me: “Então a senhora ainda mama?”
“Eu gosto de mamar!”
As alunas sorriram.
“Então a senhora não tem vergonha de mamar?“
“Não tenho!”
A senhorita está ficando mocinha e tem que aprender a ler e escrever, e não vai ter tempo disponível para mamar, porque necessita preparar as lições. Eu gosto de ser obedecida! Estais ouvindo-me D. Carolina Maria de Jesus?”
Fiquei furiosa, e respondi com insolência.
“O meu nome é Bitita. Não quero que troque o meu nome.”
“O teu nome é Carolina Maria de Jesus.”
Era a primeira vez que eu ouvia pronunciar o meu nome.
Que tristeza que senti. Eu não quero este nome, vou trocá-lo por outro.
A professora deu-me umas reguadas nas pernas, parei de chorar. Quando cheguei na minha casa tive nojo de mamar na minha mãe. Compreendi que eu ainda mamava porque era ignorante, ingênua. E a escola
esclareceu-me um pouco.
Minha mãe sorria dizendo:
“Graças a Deus! Eu lutei para desmamar esta cadela e não consegui.” Minha mãe foi beneficiada no meu primeiro dia de aula. Minha tia Oluandimira dizia:
“É porque você é boba e deixa esta negrinha te dominar.”
“Eu quero irme embora!
Eu quero mamar!
Eu quero irme embora!”
A minha saudosa professora D. Lanita Salvina perguntou-me: “Então a senhora ainda mama?”
“Eu gosto de mamar!”
As alunas sorriram.
“Então a senhora não tem vergonha de mamar?“
“Não tenho!”
A senhorita está ficando mocinha e tem que aprender a ler e escrever, e não vai ter tempo disponível para mamar, porque necessita preparar as lições. Eu gosto de ser obedecida! Estais ouvindo-me D. Carolina Maria de Jesus?”
Fiquei furiosa, e respondi com insolência.
“O meu nome é Bitita. Não quero que troque o meu nome.”
“O teu nome é Carolina Maria de Jesus.”
Era a primeira vez que eu ouvia pronunciar o meu nome.
Que tristeza que senti. Eu não quero este nome, vou trocá-lo por outro.
A professora deu-me umas reguadas nas pernas, parei de chorar. Quando cheguei na minha casa tive nojo de mamar na minha mãe. Compreendi que eu ainda mamava porque era ignorante, ingênua. E a escola
esclareceu-me um pouco.
Minha mãe sorria dizendo:
“Graças a Deus! Eu lutei para desmamar esta cadela e não consegui.” Minha mãe foi beneficiada no meu primeiro dia de aula. Minha tia Oluandimira dizia:
“É porque você é boba e deixa esta negrinha te dominar.”
(...)
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A
vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós
quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A
minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu
moro.
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"O livro... me fascina.
Eu fui criada no mundo. Sem orientação materna. Mas os livros guiou os
meus pensamentos. Evitando os abismos que encontramos na
vida. Bendita as horas que passei lendo. Cheguei a conclusão que é o pobre
quem deve ler.
Porque o livro, é a bussola que ha de orientar o homem no porvir (...)"
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Porque o livro, é a bussola que ha de orientar o homem no porvir (...)"
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Não digam
que fui rebotalho,
que vivi
à margem da vida.
Digam que
eu procurava trabalho,
mas fui
sempre preterida.
Digam ao
povo brasileiro
que meu
sonho era ser escritora,
mas eu
não tinha dinheiro
para
pagar uma editora.
- Carolina Maria de Jesus, em
"Quarto de despejo", 1960
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"[...] Deixei o
leito para escrever vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz
na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhantes. Que a
minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de todas as qualidades.
[...] É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na
favela. / Fiz o café e fui carregar água. Olhei o céu, a estrela Dalva já
estava no céu. Como é horrível pisar na lama./ As horas que sou feliz é quando
estou residindo nos castelos imaginários."
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Poesia
A Rosa
Eu sou a
flor mais formosa
Disse a
rosa
Vaidosa!
Sou a
musa do poeta.
Por todos
sou contemplada
E
adorada.
A rainha
predileta.
Minhas
pétalas aveludadas
São
perfumadas
E
acariciadas.
Que aroma
rescendente:
Para que
me serve esta essência,
Se a
existência
Não me é
concernente...
Quando
surgem as rajadas
Sou desfolhada
Espalhada
Minha
vida é um segundo.
Transitivo
é meu viver
De ser...
A flor
rainha do mundo.
- Carolina Maria de Jesus,
em "Antologia pessoal".
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Dá-me as rosas
No campo em que eu repousar
Solitária e tenebrosa
Eu vos peço para adornar
O meu jazigo com as rosas
As flores são formosas
Aos olhos de um poeta
Dentre todas são as rosas
A minha flor predileta
Se a afeiçoares aos versos inocentes
Que deixo escritos aqui
E quiseres ofertar-me um presente
Dá-me as rosas que pedi.
Agradeço-lhe com fervor
Desde já o meu obrigado
Se me levares esta flor
No dia dos finados.
Dá-me as rosas
No campo em que eu repousar
Solitária e tenebrosa
Eu vos peço para adornar
O meu jazigo com as rosas
As flores são formosas
Aos olhos de um poeta
Dentre todas são as rosas
A minha flor predileta
Se a afeiçoares aos versos inocentes
Que deixo escritos aqui
E quiseres ofertar-me um presente
Dá-me as rosas que pedi.
Agradeço-lhe com fervor
Desde já o meu obrigado
Se me levares esta flor
No dia dos finados.
- Carolina Maria de Jesus, em "Antologia
pessoal".
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Humanidade
Depôis de
conhecer a humanidade
suas
perversidades
suas
ambições
Eu fui
envelhecendo
E
perdendo
as
ilusões
o que
predomina é a
maldade
porque a
bondade:
Ninguem
pratica
Humanidade
ambiciosa
E
gananciosa
Que quer
ficar rica!
Quando eu
morrer...
Não quero
renascer
é
horrivel, suportar a humanidade
Que tem
aparência nobre
Que
encobre
As
pesimas qualidades
Notei que
o ente humano
É
perverso, é tirano
Egoista
interesseiros
Mas trata
com cortêzia
Mas tudo
é ipocresia
São
rudes, e trapaçêiros
- Carolina Maria de
Jesus, em "Meu estranho diário".
_________________________________
[Muitas fugiam ao me ver]
Muitas
fugiam ao me ver
Pensando
que eu não percebia
Outras
pediam pra ler
Os versos
que eu escrevia
Era papel
que eu catava
Para
custear o meu viver
E no lixo
eu encontrava livros para ler
Quantas
coisas eu quiz fazer
Fui
tolhida pelo preconceito
Se eu
extinguir quero renascer
Num país
que predomina o preto
Adeus!
Adeus, eu vou morrer!
E deixo
esses versos ao meu país
Se é que
temos o direito de renascer
Quero um
lugar, onde o preto é feliz.
- Carolina Maria de Jesus, em
"Antologia pessoal".
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Sonhei
Sonhei que estava morta
Vi um corpo no caixão
Em vez de flores eram Iivros
Que estavam nas minhas mãos
Sonhei que estava estendida
No cimo de uma mesa
Vi o meu corpo sem vida
Entre quatro velas acesas
Ao lado o padre rezava
Comoveu-me a sua oração
Ao bom Deus ele implorava
Para dar-me a salvação
Suplicava ao Pai Eterno
Para amenizar o meu sofrimento
Não me enviar para o inferno
Que deve ser um tormento
Ele deu-me a extrema-unção
Quanta ternura notei
Quando foi fechar o caixão
Eu sorri... e despertei.
- Carolina Maria de Jesus, em "Antologia pessoal".
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Quarto de Despejo
Quando infiltrei na literatura
Sonhava só com a ventura
Minhalma estava chêia de hianto
Eu não previa o pranto. Ao publicar o Quarto de Despejo
Concretisava assim o meu desejo.
Que vida. Que alegria.
E agora... Casa de alvenaria.
Outro livro que vae circular
As tristêsas vão duplicar.
Os que pedem para eu auxiliar
A concretisar os teus desejos
Penso: eu devia publicar...
– o ‘Quarto de Despejo’.
No início vêio adimiração
O meu nome circulou a Nação.
Surgiu uma escritora favelada.
Chama: Carolina Maria de Jesus.
E as obras que ela produz
Deixou a humanidade habismada
No início eu fiquei confusa.
Parece que estava oclusa
Num estôjo de marfim.
Eu era solicitada
Era bajulada.
Como um querubim.
Depôis começaram a me invejar.
Dizia: você deve dar
Os teus bens, para um asilo
Os que assim me falava
Não pensava.
Nos meus filhos.
As damas da alta sociedade.
Dizia: praticae a caridade.
Doando aos pobres agasalhos.
Mas o dinheiro da alta sociedade
Não é destinado a caridade
É para os prados, e os baralhos
E assim, eu fui desiludindo
O meu ideal regridindo
Igual um côrpo envelhecendo.
Fui enrrugando, enrrugando...
Petalas de rosa, murchando, murchando
E... estou morrendo!
Na campa silente e fria
Hei de repousar um dia...
Não levo nenhuma ilusão
Porque a escritora favelada
Foi rosa despetalada.
Quantos espinhos em meu coração.
Dizem que sou ambiciosa
Que não sou caridosa.
Incluiram-me entre os usurários
Porque não critica os industriaes
Que tratam como animaes.
– Os operários...
- Carolina Maria de Jesus, em "Meu estranho diário".
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